Da gente; do bem

sexta-feira, 24 de junho de 2016

"DROGA. Lá vem o Paulo, esse canalha. Maconheiro! Um lixo com pernas". Pensou Dona Dida, dona da banca de jornal. Paulo vinha para casa, descendo a rua. Voltava de um dia de trabalho daqueles... Quando passou defronte a banca, fez um gesto à dona, Dida, que o acenou hipocritamente, balbuciando maldições por detrás dos grandes óculos e falso sorriso. "esse cabelo parece um ninho de rato...", "essa tatuagem é nojenta...", "esse rosto furado...". Ela seguiu o sorridente rapaz com o olhar, desaprovando-o por seja o que for.

Quando Paulo passou pelo Bar do Gorjeta, havia um homem maltrapilho caído, certamente ébrio até o osso da alma, com o olhar perdido (parecia opaco, sem brilho). Paulo o ofereceu atenção, foi verificar se podia fazer algo pelo homem. Sempre acreditou que as pessoas devem fazer umas pelas outras o que fariam por si mesmas. Mas nada conseguiu fazer, o homem sequer o ouviu. Dona Dida ainda o encarava com a boca torta, caindo em rangidas. "Olha lá, encontrou outro vagabundo como ele, aí eles se entendem", resmungou a velha, enquanto ajeitava a imensa lente dos óculos. Riu sozinha em escárnio, alto o suficiente para Paulo virar-se em sua direção e se perguntar o que de tão bom lhe ocorrera para rir assim tão satisfeita. Acabou rindo um pouco com ela. Entrou no bar, falou com o Sr. Gorjeta, apontando para o homem caído. O movimento ia começar, era anoitecer, Gorjeta pareceu interessado em ajudar, mas queria era tirar o espanta-freguesia dali. Sorriu ao Paulo, que pensou estar fazendo algo de bom e saiu, seguindo seu caminho, com os tantos olhares reprovadores pesando sobre suas costas.

A poucos metros de sua casa, Paulo encontrou Boné, um moleque muito magro, mas muito ágil, esperto. Um garoto de 13 anos que mora ali perto, na rua, numa 'invasão'... Sim, porque... Seres humanos invadem as terras em que nasceram... Ao caminhar pela pátria, exercendo seu direito constitucional, ao existirem, se forem pobres, estarão sempre invadindo, vilipendiando... Pensava a maioria naquela rua, nos prédios, comércios e casas que haviam nos 800 metros de rua que vinham do ponto de ônibus até a casa de Paulo.

Boné perguntou a Paulo se tinha alguma coisa para ele. Paulo gostava do garoto e sempre conseguia um agasalho ou chinelo, um livro, um bico, um trocado, um lanche etc. O que quer que conseguisse era muito, pois o avô de Boné era seu único familiar conhecido e estava morrendo em plena rua, ao alcance de tantas mãos tão fechadas, prontas somente para socos. Paulo não tinha nada dessa vez. O garoto saiu arrasado para o lado do avô, que tossia.

Paulo chegou em casa. Ninguém estava lá, coisa rara. "Ótimo!", pensou, e cumpriu o ritual: deixou a mochila na cama, tirou os sapatos e a camisa, vestiu uma bermuda no lugar da calça e abriu a gaveta. Pegou seu cigarro enrolado à mão. Foi para a porta dos fundos, ninguém reparava no quintal neste momento, então com destreza ele subiu no muro para ficar na mangueira. Nos galhos altos, acendeu. Respirava, enfim. A cidade sufocava, tudo era sempre cabal e difícil, definitivo, exceto estar ali, pensando em não pensar. Nunca conseguia, sempre acabava pensando. A erva o deixava encucado, formulava grandes perguntas para si mesmo e arriscava decifrar as respostas, queria encontrar uma forma de ficar mais sábio, se preocupava com o mundo.

Ficou fumando e não percebeu que sua família havia chegado. Voltavam do mercado, haviam comprado cerveja, estavam falando alto. Ele suou frio, apagou o cigarro, deixou-o escondido na árvore e desceu rapidamente, mas o pegaram no pulo... Com os olhos vermelhos.

Mais gritaria, os mesmo xingamentos, mais uma surra. Que vacilo bobo. Podia ter saído, não precisava ficar pensando na própria casa. "Maconha é uma merda, coisa de bandido", seu pai repetia agressivamente. E enquanto bufava acendeu um cigarro para se acalmar... Acabou fumando dois. Ele não sabia, mas ia morrer em dois anos e meio, por conta do câncer de pulmão que ainda não deu sinais.

Paulo sentiu-se envergonhado, queria sair, mas agora era impossível. O jeito era estudar, então abriu as apostilas. Ele é auxiliar de enfermagem. Ganha o suficiente para ajudar a família e pagar seus estudos e alguma cultura, além da planta. Mas quer ser médico. E é um sujeito bastante dedicado. Paulo não se sente controverso. Diz que o fumo é coisa natural. Mas só ele pensa assim naquela rua... Rua de gente correta, que obedece a lei, essa gente de bem."

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